Sou psicólogo do CAPS de uma cidade de pouco mais de 40 mil habitantes no interior de São Paulo. A sigla CAPS significa Centro de Atenção Psicossocial.
Todos os anos recebemos estudantes do curso técnico em enfermagem da ETEC (Escola Técnica Estadual) da cidade. Em uma dessas ocasiões, a professora responsável pelos estagiários convidou-me para expor a eles o que faz um psicólogo no CAPS. Não tive dificuldades para contar, de improviso, quais eram minhas crenças a respeito, construídas nos meus quase 10 anos de trabalho nesse serviço. O conteúdo dessa exposição e dessa conversa com os alunos é o que eu vou contar aqui.
Não demorei nem um instante para afirmar ao grupo o que eu considerava a parte principal da minha resposta: um psicólogo de CAPS faz exatamente o mesmo que todos os demais profissionais daquele serviço, ou seja, o atendimento psicossocial.
Essa minha crença foi construída a partir de algumas características fundamentais do que os CAPS devem ser. Um CAPS é um serviço de saúde com certas características especiais. Sem essas características, ele seria um serviço igual a outros da rede de saúde pública que trata a saúde mental, como um ambulatório ou um hospital psiquiátrico.
Mas o que eles têm de especial?
A primeira das características especiais está no próprio nome: deve ser um serviço que ofereça atenção psicossocial. Também é um espaço onde se trata a prevenção de internações psiquiátricas e o funcionamento interdisciplinar da equipe.
Deixe-me esclarecer rapidamente cada uma delas.
O funcionamento interdisciplinar da equipe é um convite para um tipo de interação entre os profissionais, que vai além do funcionamento multiprofissional. Esse último é como a maioria dos serviços de saúde funcionam, nos quais há o trabalho separado de profissionais de várias formações (ou disciplinas), como profissionais da medicina, da enfermagem, da odontologia, da fisioterapia, da terapia ocupacional, da psicologia, da administração, às vezes também do direito, da pedagogia… sendo que eles trabalham, principalmente, com o encaminhamento interno de pacientes e usuários entre si.
No CAPS, além desses encaminhamentos internos, os profissionais trocam informações entre si sobre os casos e se engajam em tratamentos compartilhados uns com os outros, como atividades de grupo, visitas domiciliares, intervenções em situações de crise, reuniões regulares de equipe e construção de projetos terapêuticos. A formação diferente de cada profissional é colocada a serviço dos pacientes muitas vezes de forma simultânea, ou seja, ao mesmo tempo, com os profissionais trabalhando lado a lado. É isso que chamamos de funcionamento interdisciplinar.
Os CAPS nasceram dentro do movimento antimanicomial no Brasil. Esse movimento busca manter uma pessoa que esteja em crise psicológica grave o menor tempo possível numa internação psiquiátrica. O trabalho do CAPS é de prevenção para que haja menos internações psiquiátricas; é também um trabalho de acompanhamento após as internações, durante o tempo que for necessário.
As pessoas que necessitam de internações frequentemente apresentam comportamentos muito desafiadores para todos os envolvidos com elas – a família, os amigos, os colegas de trabalho -, e especialmente, elas próprias. Essas pessoas têm psicoses, manias ou depressões graves, ideações suicidas com tentativas de se matarem, entre tantos outros comportamentos e, portanto, mesmo quando não se encontram em uma crise que justifique o uso de internação, é comum que se comportem de maneiras que causem desgaste, estresse e sofrimento crescentes a elas e às pessoas de seu convívio.
Se esses comportamentos não são cuidadosamente compreendidos, e se não recebem as respostas e reações adequadas, não melhoram e ainda podem ter os problemas agravados rapidamente, o que leva a novas crises e novas internações. São desafios, muitas vezes, que ultrapassam a capacidade da família em conviver, estudar e desenvolver estratégias para enfrentar com sucesso as dificuldades psicológicas dessas pessoas.
Por isso, os CAPS devem ser serviços capazes de evitar o agravamento das crises das pessoas e devem ser capazes de diminuir os comportamentos causadores de sofrimento, a ponto de cada paciente passar cada vez por menos internações em sua vida, assim como, também, o número de internações psiquiátricas deve diminuir na população atendida pelos CAPS.
Tudo isso precisa da atenção psicossocial, que é a característica principal do CAPS. A atenção psicossocial é o conjunto de ações com a missão de prevenir internações psiquiátricas entre as pessoas que vivem situações tão desafiadoras como um esquizofrênico ou uma pessoa em crise maníaca grave, ou ainda, uma pessoa dependente de alguma droga, como o álcool, por exemplo.
Para pessoas que vivem essas situações nem sempre basta o melhor tratamento de um ótimo psiquiatra, mas que esteja separado de uma psicóloga que também oferece um ótimo tratamento psicológico, mas igualmente fechada em sua sala e separada de uma enfermeira excelente que, ao observar a necessidade de uma terapia ocupacional apenas encaminhe o paciente à terapeuta ocupacional por um formulário. Muito pelo contrário, todos esses profissionais devem compartilhar horas de trabalho uns com os outros e, juntos, com esses pacientes em comum, seguir projetos terapêuticos construídos a várias mãos, incluídas as do próprio paciente.
Porém, a interdisciplinaridade não garante sozinha que uma intervenção seja psicossocial. Para isso, é necessário que os membros da equipe sejam capazes de agir de maneira que ultrapassem as técnicas típicas de suas formações originais. É necessário que estejam preparados para as quatro ações psicossociais que garantem esse tipo de trabalho. São elas: o matriciamento, a intercessão, a intervenção social e familiar, e a intervenção em situação de crise.
- O MATRICIAMENTO é uma atividade principalmente pedagógica. Os terapeutas levam a pessoas e profissionais do convívio do paciente conhecimentos de psicologia, enfermagem, saúde ocupacional etc. Esses conhecimentos ajudam no convívio entre os pacientes e suas famílias ou nos círculos em que ela vive. Por exemplo, é possível levar esses conhecimentos aos professores de uma pessoa esquizofrênica, para que eles sejam orientados sobre as melhores formas de abordar o aluno em seu cotidiano.
- A INTERCESSÃO é quando a equipe do CAPS intercede em uma situação que auxilie o paciente junto a outros profissionais ou serviços da comunidade. Por exemplo, quando um escrivão de polícia sente dificuldade em receber o registro de uma queixa criminal de uma pessoa cujo discurso é lento ou confuso. Então, um dos terapeutas do CAPS o acompanha à delegacia para garantir que o paciente seja atendido integralmente.
- A INTERVENÇÃO SOCIAL E FAMILIAR acontece quando familiares, colegas de escola ou de trabalho, ou vizinhos necessitam ser ouvidos, orientados, ou quando a relação deles com o paciente requer alguma mediação de conflito. Nesses casos, os terapeutas do CAPS assumem esse papel. Levam os colegas e familiares ao CAPS ou vão até eles para fazer a intervenção.
- Por fim, a INTERVENÇÃO EM SITUAÇÃO DE CRISE é o preparo e a predisposição em agir durante as crises do paciente, onde elas ocorram. É um momento singular em que tantas oportunidades – também apesar dos riscos – se abrem de maneira potencialmente proveitosa para a evolução do paciente.
Enfim, qual é o trabalho de um psicólogo no CAPS? É matriciar, interceder, mediar conflitos, mergulhar nas crises dos pacientes, tendo em sua retaguarda qualquer dos outros membros de sua equipe. É trabalho do psicólogo do CAPS, também, oferecer retaguarda a seus colegas, sejam eles psiquiatras, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e outros, quando eles vão a delegacias, clínicas odontológicas, lares, pontes altas resgatar pacientes que ameaçam suicídio, mediar crises com a família ou mesmo segurar em suas mãos enquanto tratam cáries.
E quando não estão fazendo tantas e tão variadas atividades, os psicólogos podem ser simplesmente psicólogos, sentados em uma sala com seus pacientes de psicoterapia, fazendo o que todos os psicólogos estão mais que acostumados a fazer. Porém, essas atividades de psicoterapia estão nas margens do trabalho psicossocial dos CAPS; enquanto no grande centro estão as incomuns ações psicossociais.
Paulo F. F. Pestana tem 43 anos, é psicólogo graduado pela Universidade de São Paulo (USP), de Ribeirão Preto (SP), adepto da Análise do Comportamento e da Abordagem Centrada na Pessoa. Trabalha com atenção psicossocial desde a graduação, concluída em 2005. É funcionário de um Centro de Atenção Psicossocial do interior paulista há 10 anos e psicólogo em clínica particular.