Medo: no ar, antes de mergulhar
Ontem resolvi colocar o Beto numa das plataformas aéreas que criei pra ele subir. Instalado numa das paredes da sala, o tal playground de gato estava lá, abandonado, sem que sequer o Beto olhasse para o alto e quisesse subir.
Dizem que o gato adora esse tipo de projeto aéreo, preferência do felino que tem raízes arbóreas. Escutei uma médica veterinária psiquiatra falar sobre isso. E eu mesma já vi muitos gatos subindo, descendo e aproveitando a vista da casa em que mora. Mas o Beto, até agora, nada.
Resolvi ajudá-lo, pensei. Pus o bicho lá, e o desespero que se seguiu deixou-me atônita. Ele simplesmente teve um ataque de pânico, não assim, tecnicamente falando, mas um pânico expressado no olhar esbugalhado, na saliva saindo da boca e pingando na plataforma, na aguinha escorrendo das narinas.
Desespero total. Beto olhava para todos os lados em busca de uma salvação. Eu, embaixo, sem saber o que fazer, primeiro pensei em deixá-lo resolver a situação por si mesmo; depois, também me desesperei diante do desespero dele. Subi numa cadeira e peguei o Beto, que não se rebelou, aceitou meu abraço e minhas mãos, e desceu comigo.
No chão, ele teve um ataque de espirros que, enfim, liberou uma secreção que estava latente em suas narinas. Depois, relaxou. Eu, não.
Fiquei pensando horas no que havia acontecido. Por que tanto medo? Por que esse desespero de estar no ar, aparentemente sem ninguém para apoiá-lo? Por que tanto medo do desconhecido, do novo, da possibilidade de ver o mundo sob outra ótica?
Me vi nele e fiquei triste. Meu medo também se instalou nele. Estou enlouquecendo o bicho com a minha cabeça enviesada.
Me vi nele e fiquei feliz. Meu medo está mais do que nunca claro, como água despoluída. Cara a cara com o meu pavor instalado naquela plataforma aérea, o espelho ficou gigantesco. Sou uma mulher em desespero constante, com medo de tudo. Beto repertorizou o que sinto, diriam as veterinárias que hoje estudam a influência do ser humano no ser bicho.
Há dias penso em escrever sobre o medo para este blog, mas o primeiro pensamento ficou só numas primeiras linhas. Agora, com um fato concreto, sentei-me aqui para contar, o que dá ainda mais consistência a essa vida recheada de medo.
Estou escrevendo um material sobre como estamos interferindo com as nossas emoções na vida dos bichos domésticos, aqueles que convivem de perto com a gente e, muitas vezes, “enlouquecem” junto. Entrevistei duas médicas veterinárias que se dedicam a estudar esse assunto e talvez eu converse com alguém especialista também para falar do quanto nós, humanos, sentimos medo, o medo sem razão e despropositado.
Por enquanto, vou contando um pouco desse meu medo para entender como cheguei até aqui, perto dos 60 anos, evitando viver de forma mais intensa. Estou tentando enfrentar isso, e este blog é uma das formas que estão me ajudando.
No Quem sou, falo um pouco sobre isso. Pincelo, na verdade, só para começar o mergulho que pretendo fazer na minha alma. Lá eu digo que vai ser difícil, por isso quero.
Isso explica em parte a felicidade que senti ao me ver no medo que o Beto sentiu ao tirar os pés do chão. Para um gato isso soa como doentio. Para um humano parece mais normal porque a gente se acostuma com o aleijão como se parte inata fosse da gente. A expressão feliz significa, tão somente, que encarei meu medo e, como um diagnóstico cravado, vi a possibilidade de me curar.
Agora, o Beto dorme tranquilo no meio da cama e eu escrevo para falar de mim.
Estou me curando? Estou indo, com medo e tudo.
Jornalista e escritora, formou-se em jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina (PR) em 1985. Foi redatora no jornal Folha de Londrina, na década de 1980; jornalista e editora em publicações segmentadas nos anos 1990; é redatora e editora na A Hora do Ovo desde 2008. Escreveu 10 biografias. É editora deste blog.