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Solidão, eu e Viviane

Solidão, eu e Viviane

Então era possível falar de igual para igual com os adultos e ter a coragem de desobedecer às ordens superiores!

A pandemia da covid-19 me trouxe à tona os muitos significados de solidão. Nesse pouco mais de um ano sozinha, distante da vida de antes, sempre me pego pensando sobre a diferença entre antes e agora. E quase sempre chego à conclusão de que, para mim, pouco mudou a condição de estar sozinha.

Nunca precisei da desculpa de uma pandemia para me esconder ou praticar o viver só. Credito isso ao modo como fui educada. Na primeira infância, nenhum contato social. Lembro-me até hoje do desespero dos primeiros dias no jardim da infância, o ciclo escolar que antecede o primeiro ano de escola formal.

O terror desses primeiros dias foi ampliado ainda mais pela presença de uma menina “viva”, alerta e extremamente “levada”. É como chamávamos uma criança impossível de ser controlada. Como a maioria de nós, crianças da década de 1960, vivia sob absoluto controle, uma criança como Viviane chamava a atenção enormemente. Imagina para mim, que jamais tivera contato contínuo com outra criança, senão meus dois irmãos. Hoje, Viviane talvez fosse apenas mais uma criança normal ou até mesmo considerada dócil e pacata.

A verdade é que a experiência de sair de casa e conviver com outras pessoas – especialmente da minha idade – ganhou um terror extra com a presença da Viviane. Ela rabiscava os papéis que a professora nos passava para que desenhássemos “ordeiramente”, segundo as normas. Falava… sim, ela falava. Me lembro bem que ela falava bastante e que tudo soava muito alto pra mim. Em casa, falavam muito pouco com as crianças.

Pensando bem, o nome Viviane lhe cabia como uma luva. Ela era viva, esperta, inteligente, criativa e corajosa, qualidades que, hoje entendo, eram punidas constantemente com o castigo comum à época de ficar parada, olhando para o canto da parede por um tempo, ou ser levada à diretoria. Mas o que uma criança de seis anos poderia dizer à diretora da escola sobre a molecagem de ser somente o que era? Sei lá, nunca soube o que acontecia na sala da diretora. Eu era uma criança obediente. Acomodada. Sempre com medo de estar cometendo algo fora das regras.

Então o primeiro ano na escola se passou, mas o terror não. Ele voltou no ano seguinte, quando entrei na primeira sala de aula da escola formal. Era o que se chamava o primeiro ano do grupo. O grupo escolar, onde estudavam todas as crianças entre o primeiro e o quarto ano. Depois, íamos para outra escola, para a segunda fase que se chamava ginásio: os quatro anos seguintes que antecediam ao colégio, outros três anos que dariam numa possível universidade.

Então, eu tinha, pelo menos, 11 anos de terror pela frente, antes de enfrentar o princípio da vida adulta. E eu lá sabia o que era vida adulta, se nem ao menos entendia o que era ser criança e estar onde estava? Fora da “protegida” casa em que eu vivia, tudo me parecia um horror.

Foi então que, ao entrar na sala de aula do primeiro ano do grupo, horrorizada constatei que as carteiras eram duplas. Eu teria que dividir a minha carteira com outra criança durante todo aquele ano na escola. E então, a máxima coincidência: minha colega de carteira era Viviane, a menina de cabelos pretos cacheados, olhos vivos como nenhum outro, vestido branco, curto e rodado, de bolinhas vermelhas, e lábios carnudos, de um vermelho intenso, contrastados pelos dentes brancos e sempre limpos.

Seria mais um ano desesperador, agora ao lado consagrado de uma menina linda, cheia de vida e com coragem de ser a criança que eu não conseguia ser. Ela receberia os castigos com o mesmo sorriso com que fazia molecagens, e eu a olharia da mesma forma que antes, admirada e cheia de medo.

Então era possível falar de igual para igual com os adultos e ter a coragem de desobedecer às ordens superiores! Só nesses momentos meu medo se encantava com a possibilidade de eu deixar de ser quem eu era até ali.

Viviane era o demônio de saia curta, rodada, cheia de bolinhas e um olho enorme e vivo, com cílios bem pretos e grandes. Acho que isso era a felicidade.

No segundo ano do grupo não vi mais a Viviane. Não estava mais na escola. Parece que os pais se mudaram. Jamais a esqueci.

Foi a primeira vez que entendi que eu era diferente. E só.