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Enfim, o diagnóstico

Enfim, o diagnóstico

Os corações inquietos se aquietam. Os ombros relaxam, os olhos conferem uma realidade mais tranquila porque há, sim, um caminho a seguir, agora iluminado.

Após a festa de aniversário de 83 anos da minha mãe, ouvi de uma amiga de muitos anos:

– Sua mãe está mais leve, mais solta. Achei ela muito mais à vontade. Nunca tinha visto ela assim, conversando com todos e tão bem!

Aquilo me chamou a atenção. Minha mãe estava mesmo mais leve e o motivo era a mudança de rumo no caso do meu irmão. Depois de anos e anos de incertezas e negações sobre seu quadro mental, finalmente tínhamos um diagnóstico e, por consequência, um tratamento adequado.

O peso que lhe saiu dos ombros era mesmo enorme! Muitos anos negando a doença, convivendo com as constantes instabilidades do meu irmão, procurando manter as aparências para uma sociedade que já sabia de tudo mas cobrava o silêncio inquisidor, e a pressão interna de uma pessoa tão retraída como ela.

Fiquei pensando que o diagnóstico cravado é uma bandeira de libertação. O caminho se abre e, ainda que seja difícil, há um roteiro a ser seguido que aponta a direção. Foi aquilo que eu disse no texto CAPS, a luz no início do túnel, neste blog. 

Depois que o diagnóstico de uma doença é sacramentado, a vida toma outro rumo. Ainda que seja difícil conviver com a doença e suas consequências, a certeza do que ela representa e de como tratá-la torna tudo mais fácil, é um caminho bem mais suave. E tenho certeza de que para minha mãe também foi assim.

Recentemente vi esse alívio também em outros familiares de pessoas com transtornos psíquicos, ao finalmente chegar ao diagnóstico. Foram anos de confusão e de sofrimento para todos, o doente e os familiares, e essa confusão é tanto psíquica quanto no dia a dia concreto. A vida de todos fica de pés para o ar e ficam todos se trombando e se machucando, a começar pelo próprio doente.

A psiquiatra americana Kay Redfield Jamison expôs seu drama vivido durante anos nesse caminho sem direção e sem diagnóstico. Ela conta tudo no livro Uma mente inquieta*, no qual relata seu sofrimento e o de seus amigos e parentes com a doença maníaco-depressiva que ela tem, hoje conhecida como transtorno bipolar, ou bipolaridade. Os primeiros sinais apareceram para ela na adolescência e, conforme os anos passavam, o desconforto e o sofrimento só cresciam, muito embora ela não se tocasse de que era uma doença.

É assim mesmo. Você não se toca porque há uma série de véus na frente dos olhos. Não são tapumes sólidos, são uma cortina translúcida de muito medo, preconceitos e, claro, uma completa ignorância do que seria estar “doente da cabeça”, como se dizia antigamente. Tanto é difícil para quem tem o problema quanto para quem convive. E a translucidez da cortina é a prova de que, de alguma forma, há pistas sendo apresentadas; de que – inconscientemente -sabemos que há um problema, mas o negamos. É, ao mesmo tempo, a oportunidade e a maldição convivendo entre nós e nós mesmos. Estamos sempre a um passo de descobrir o que está bem diante do nariz, mas é preciso transpor a ponte frágil e balançando que fica entre confirmar, aceitar e conviver com a doença.

Pessoas muito vigorosas, com força de ação, julgam que aqueles “sintomas” são apenas características do que se acostumou chamar de “personalidade forte”. Inquietos são categorizados no arquivo do “ele é assim mesmo, desde criança”. Deprimidos são colocados no escaninho dos preguiçosos, “difíceis de lidar”. E por aí vai. Há uma infinidade de carimbos que são batidos na testa dos doentes com transtornos psíquicos.

É importante saber que, na verdade, tudo, tudo que envolve o transtorno psíquico – diagnosticado ou não – é difícil de lidar. Ninguém tem a fórmula, mas o diagnóstico é sempre um facho de luz que nos permite caminhar por uma senda menos acidentada.

Da completa ignorância sobre o problema à chegada do diagnóstico cravado, Kay Redfield Jamison viveu altos e baixos, baixos e altos entre a fase infanto-juvenil e a vida adulta: euforias e depressões, uma confusão absurda na mente, com pensamentos supersônicos, numa velocidade incontrolável de ações estapafúrdias que a levavam a sempre estar se reconstruindo. É assim com a doença maníaco-depressiva, a bipolaridade: mudanças de humor abruptas, com excitação, intensidade e exaltação – os chamados períodos maníacos; depois, sentimentos de tristeza, baixa auto-estima, falta de esperança, depressão.

Ainda estou lendo Uma mente inquieta, que Jay lançou em 1995, contando e expondo corajosamente a bipolaridade em sua vida. Assim que terminar a leitura, vou escrever um texto contando um pouco sobre o livro. Acho que, como aconteceu comigo e minha família, pode ajudar muita gente a entender como é difícil conviver com um transtorno psíquico, reconhecê-lo e aceitá-lo. E, enfim, como o diagnóstico e o tratamento se tornam fundamentais para que possamos enxergar a nós mesmos por trás da doença, conviver com a doença, controlá-la para que a vida flua um pouco mais naturalmente.

Talvez isso explique por que minha mãe estivesse tão radiante, leve e feliz ao comemorar com suas amigas seus 83 anos de idade!

Ah, sim, a gente continua fugindo dos problemas, como bons seres humanos que somos. Não estou dizendo que o pote de ouro no final do arco-íris foi finalmente encontrado e que as borboletas e as flores coloridas passaram a dançar na nossa vida ao som das 4 estações de Vivaldi. Mas com o diagnóstico, os fantasmas, sim, perderam a graça de nos assombrar sorrateiramente, ficando à espreita no beco escuro.

  • UMA MENTE INQUIETA é o livro cujo conteúdo é o testemunho pessoal de Kay Redfield Jamison, autoridade internacional em doença maníaco-depressiva e uma das poucas mulheres catedráticas de medicina em universidades norte-americanas. A obra é a revelação da sua própria luta, desde a adolescência, com a doença, e de como a doença moldou sua vida. (Fonte: Google books)