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Aos loucos os terrores “normais”

Aos loucos os terrores “normais”

Inaugurar a seção LOUCURA deste blog não foi tarefa fácil. Embora haja muito o que falar, empaquei no tema que, aliás, foi exatamente o que me levou a fazer este blog.

A razão dessa demora em preencher a LOUCURA talvez tenha sido a mesma que me levou a demorar tanto para colocar este blog no ar e divulgá-lo.

Não sabia como começar.

Isso acontece quando tenho aquele medo imponderável e gigantesco que me acompanha sempre que tento colocar novas ideias na prática. Sou boa no pensar, mas complicada em praticar.

Havia começado a ler o livro História da Loucura, do filósofo e historiador Michel Foucault, e ali está uma boa síntese do que tem sido a caminhada desse tema ao longo da história da humanidade. Prossigo na leitura, mas resolvi começar por aqui, numa experiência brasileira, que traz para o nosso mapa o que o mundo também viveu; aqui, com pitadas trágicas bem brasileiras. A bem da verdade, exemplos mundo afora não faltam, como bem demonstra Foucault em seu livro. Falarei dele em outro post.

Aqui no Brasil, temos o nosso próprio calvário vivido durante mais de 80 anos com o Hospital Colônia de Barbacena, um acontecimento grotesco da nossa história que deu à cidade mineira de Barbacena o “título popular” de “cidade dos loucos”.

Mas como acredito que as coisas não sejam nada simples de serem explicadas, a história do Colônia – como é chamada a instituição em Minas – tem a complexidade da nossa própria história como país e como seres humanos em evolução.

Sim, estamos evoluindo, embora nem sempre pareça. A evolução não é como uma grande invenção, uma tecnologia avançada ou o desenvolvimento da ciência. A evolução é muito lenta porque evoluir é muito mais do que ter um celular que faz tudo, um cartão que substitui o dinheiro, um carro que voa e conversa com você. Evoluir é compreender a mudança, é aceitar que mudamos, é mudar junto.

E esse tempo, o quanto demora para que isso aconteça, não é igual para todos. Basta a gente se olhar no espelho e encarar as nossas próprias dificuldades em aceitar as mudanças da nossa vida.

Difícil, né?

Por isso a demora. Porque os que enxergam antes precisam esperar os que ainda não viram e, portanto, não aceitam. É preciso esperar pacientemente e, no entanto, não parar de acreditar na mudança e continuar fazendo com que ela aconteça, mesmo sob fogo cruzado.

Se os que acreditam, se os que enxergam, pararem, aí sim é que a evolução não acontece.

A loucura e os problemas mentais padecem exatamente desse mal. Não é de hoje que existe o preconceito com os “loucos” – e aí se incluem todos que não se enquadram nesse imenso mundo quadrado em que vivemos. Loucos são todos que não obedeciam às regras: desde um menino tímido até uma mulher inteligente e rebelde que não aceitava os desmandos do machismo. Era louco também um desafeto político, uma voz dissonante num casamento ou numa família rígida.

Sem falar nos que realmente sofriam de algum problema psíquico. Todos os diferentes, sem exceção, eram taxados como loucos e, portanto, prontos para serem despachados para um hospício ou coisa que o valha.

E aí, os hospitais psiquiátricos serviam exatamente a esse propósito: esconder da sociedade essa “gente maluca”, que destoava das regras da ocasião. E as regras eram muitas e variavam conforme a “lei” de cada um que mandasse no pedaço. O Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, é um exemplo importante dessa cena trágica apresentada por uma sociedade pobre em ciência, rica em preconceitos, à mercê dos aproveitadores.

No livro Holocausto Brasileiro, a jornalista mineira Daniela Arbex conta a história do Hospital Colônia de Barbacena através das histórias de pessoas que, muitas vezes, passaram a vida toda encarceradas no local, esquecidas de suas famílias e abandonadas à própria sorte. Tiveram suas vidas transformadas por conta de serem “diferentes” de algum modo.

Entre 1903 – quando nasceu – e a década de 1980 – quando finalmente encerrou sua história de horrores, o Colônia recebeu milhares de pessoas que foram (des)tratadas como loucas, postas numa instituição que nada tinha de psiquiátrica conforme a ciência manda. Era um depositário de indigentes, explorados como mão de obra para serviços nos arredores e expostos à mais abjeta situação de degradação, sem cama, sem roupa, sem comida decente, torturados com “métodos” absurdos, como a ducha escocesa – tipo de jato de água fria com alta pressão -, banhos gelados na madrugada como forma de castigo, e torturas com eletrochoques ministrados indiscriminadamente, o que levou centenas à morte súbita.

Foram 60 mil pessoas mortas, a maioria abandonada pela família.

O Hospital Colônia foi o maior hospício do Brasil, onde mais de 70% dos internos não tinham diagnóstico de doença mental. Eram internadas sem que soubessem o porquê, violadas em todos os seus direitos mais básicos.

Esse era, basicamente, o modelo de atendimento manicomial no Brasil do início do século XX até, pelo menos, a década de 1980. E tudo isso, com a concordância e indiferença de autoridades, médicos, comunidades e famílias.

Louco era pária, gente suja e abjeta, que incomodava a sociedade e, portanto, merecia ser apartado do convívio das pessoas. E por louco entendia-se qualquer pessoa que atrapalhasse a vida dos “brasileiros de bem”, “perturbasse a ordem pública”, reclamasse de alguma injustiça, parecesse diferente ou mesmo ameaçasse o status de pessoas bem-posicionadas na sociedade.

A filha do fazendeiro que reivindicou receber o mesmo tanto que os irmãos homens para trabalhar na fazenda da família foi internada pelo pai no Colônia, sem nunca mais sair e sequer receber uma visita.

A garota de 14 anos que trabalhava em “casa de família”, foi estuprada pelo patrão, ficou grávida e foi internada no Colônia para ser “escondida” de todos. Ali nasceu seu filho que foi levado para outra instituição e de quem ela só foi ter notícias e ver depois de 30 anos.

A mulher, cujo marido a abandonou no Colônia e que, graças ao apoio de uma boa alma que trabalhava no hospital, pode entrar em contato com o filho e voltar à vida em sociedade.

Ou ainda, o filho da lavadeira modesta e crédula, que achou por bem internar o adolescente no Colônia, pois acreditava que ele tivesse algum problema, quando, na verdade, era apenas um menino muito tímido. A pobre mãe nunca mais voltou a ver o filho.

São muitas as histórias mostradas pela jornalista mineira em seu livro, que também traça as mudanças ocorridas no hospital a partir do final dos anos 1970, graças às denúncias da imprensa, de médicos mais corajosos – que quase perderam suas licenças por querer a mudança – e também de estudiosos brasileiros e estrangeiros, que deram seu apoio para que os absurdos do hospital Colônia acabassem.

Hoje, restam as lembranças arquivadas e à mostra no Museu da Loucura, lá mesmo em Barbacena. A instituição está aberta à visitação e expõe o passado difícil e traumático da saúde mental em Minas, no Brasil.

A jornalista Daniela Arbex relembra, em seu livro, que “se o Colônia foi o que fez mais vítimas no país, cerca de 60 mil brasileiros entre 1930 e 1980, a tragédia que ele produziu está longe de ser superada”.

E prossegue:

“Em 2004, uma inspeção nacional realizada nos hospitais psiquiátricos brasileiros pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil encontrou condições subumanas em vinte e oito unidades. Considerada uma das maiores vistorias feitas no país, o trabalho alcançou dezesseis estados e revelou que, de norte a sul do país, ainda prevaleciam métodos que reproduzem a exclusão, apesar dos avanços conquistados com a aprovação de leis em favor da humanização das instituições de atenção à saúde mental e da consolidação de instrumentos legais comprometidos com os direitos civis dos pacientes psiquiátricos. Nessas unidades foram encontrados celas fortes, instrumentos de contenção e muitos, muitos cadeados, além de registros de mortes por suicídio, afogamento, agressão ou a constatação de que, para muitos óbitos, simplesmente, não houve interesse em definir as causas.”
Na década de 1980, depois de muita luta, indignação e atuação de profissionais de vários setores, o tema saúde mental começou a ser visto de outra forma no Brasil. Vieram leis – como a do deputado federal Paulo Delgado, que encaminhou a saúde pública para uma reforma antimanicomial – e vieram métodos para dar início a um novo tempo no atendimento aos portadores de transtornos psíquicos no país.

A respeito disso, há ainda mais histórias que vou contando aqui, aos poucos.

Enquanto lia o livro Holocausto brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, fui me perguntando como tudo isso foi possível, como podemos deixar acontecer tamanha tragédia em tão longo espaço de tempo. Oitenta anos. Quem são os culpados?

Numa entrevista por ocasião do lançamento de seu livro, em 2013, Daniela refletiu:

“A culpa é coletiva. É de toda a sociedade porque todo mundo participou disso. Essa é uma resposta importante porque não dá para, em nome da justiça, a gente cometer a injustiça de falar de um só nome. Foram oito décadas de violação de direitos, oito décadas de maus tratos, de tortura, de fome, de frio, oito décadas em que passaram por lá milhares de pessoas. A cidade de Barbacena convivia com essa tragédia. Os funcionários conviveram com isso. As famílias deixaram seus parentes lá.

Os médicos participaram disso de alguma forma. São muitas pessoas envolvidas. Para que uma tragédia dessa exista, ela aconteça durante 80 anos, é preciso que haja uma omissão coletiva.

É lógico que a gente nunca vai poder tirar a responsabilidade do Estado brasileiro – porque o Estado brasileiro era o responsável por cuidar daquelas pessoas e o Estado falhou. Todos falharam com as 60 mil vítimas do Colônia.”

E tudo porque não aguentamos a diferença, a doença mental, os que mais precisam da nossa compreensão e aconchego. “A doença é uma coisa normal da vida. O que não é normal é não haver convivência pacífica com ela. O maior problema ainda é de aceitação da dificuldade do outro”, disse o então deputado federal Paulo Delgado ao responder aos críticos da reforma no atendimento à saúde mental no Brasil.

(Foto: Luiz Alfredo/Revista O Cruzeiro – 1960)